Em “Cinema e Temas Urbanos”, o professor da USP Felipe Noto ensina conceitos do urbanismo através de filmes como “Um Corpo Que Cai”, de Hitchcock
Com a pandemia de covid-19, em 2020, a educação precisou reinventar a sala de aula para caber no mundo virtual, enfrentando a dificuldade de captar a atenção dos alunos do outro lado da tela. A estratégia do professor Felipe de Souza Noto, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP, foi aplicar textos teóricos sobre urbanismo à análise de filmes populares. Entre 2020 e 2021, o professor ministrou a disciplina Cinema e Temas Urbanos, cujas aulas foram transformadas em livro. Publicado pela Editora da USP (Edusp), Cinema e Temas Urbanos: Sete Filmes, Sete Textos, Sete Ensaios ilustra conceitos do urbanismo com cenas de filmes como o clássico Um Corpo Que Cai, de Alfred Hitchcock. A obra será lançada no dia 24, às 19 horas, na Livraria Martins Fontes, em São Paulo.
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A disciplina Cinema e Temas Urbanos surgiu como uma tentativa pedagógica de “acrescentar uma camada emocional ao processo de aprendizado”, conquistando o interesse dos alunos por meio das narrativas, como explica o professor na introdução do livro. Agora, com a publicação, o professor propõe levar o debate sobre urbanismo para além da sala de aula virtual. Não é necessário cursar Arquitetura para embalar na leitura, em especial com a seleção de sucessos de bilheteria como Taxi Driver, de Martin Scorcese, e A Doce Vida, de Federico Fellini. Além dos filmes, cada ensaio também referencia outras formas de arte, passando pela música, pintura, literatura e fotografia.

Outra linha que costura os ensaios é a negociação dos personagens com o destino. Nas tramas, os sujeitos se veem presos a caminhos pré-determinados, muitas vezes que vão contra seus interesses pessoais. Essa trama se traduz como uma anedota para o impacto do urbanismo na vida das pessoas – afinal, as rotas urbanas são traçadas independentemente das necessidades e desejos de cada sujeito.
O autor desenvolve essa proposta, em especial, no segundo ensaio, “Projeto e Destino”, uma leitura do livro Primeira Lição de Urbanismo, do urbanista italiano Bernardo Secchi (1934-2014) à luz do filme A Última Sessão de Cinema, do diretor estadunidense Peter Bogdanovich. O longa-metragem retrata uma pequena cidade do Texas, nos Estados Unidos, no momento em que alguns jovens têm suas expectativas quebradas pelo acaso da vida. Os sonhos que davam sentido à existência dos adolescentes precisam dar espaço para a realidade, o que leva ao livro de Secchi. Nele, o autor apresenta o urbanismo como articulação entre território, sociedade e política, uma tentativa paradoxal de planejar o espaço para suas mudanças imprevisíveis. Assim como os jovens texanos, o urbanista precisa antecipar a quebra do próprio projeto, propõe Noto. Para ele, “aceitar a mudança como parte do processo é uma lição de otimismo – e de urbanismo”.

No ensaio “Vórtices da Significação”, Noto desenvolve uma metáfora musical. A sugestão do professor é que a leitura seja acompanhada de A Arte da Fuga, do compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750). Tanto a técnica musical da fuga quanto o roteiro do filme Um Corpo Que Cai consistem em repetições, contrapontos e espirais. A experiência sonora da fuga é visual e narrativa: Hitchcock trabalha como Bach, sobrepondo camadas que se imitam e se desdobram, ora em harmonia, ora em tensão, até que o espectador se veja arrastado por um vórtice de interpretações. “Os constantes inícios e reinícios da melodia a transformam em harmonia”, escreve Noto, traçando um paralelo direto com a estrutura do filme: a repetição obsessiva de rostos, lugares e memórias em uma espiral de ilusão e loucura.
A estrutura do próprio ensaio é espiralada, uma metalinguagem que dificulta a leitura, mas propõe uma leitura intertextual entre o cinema de Hitchcock e a teoria urbana do historiador francês Jacques Le Goff (1924-2014) no livro Por Amor às Cidades. Em meio às curvas, Noto analisa a simbologia da verticalidade em torres, escadas e pontes, elevações estéticas que podem ser perigosas. As referências se mesclam, possibilitando interpretações variadas, provavelmente fruto das contribuições dos alunos nas aulas on-line. O professor compara o Empire State Building, em Nova York, nos Estados Unidos, à Ponte Estaiada, em São Paulo, como símbolos contemporâneos dessa verticalidade simbólica.
De forma análoga, em outro ensaio Noto põe o filme Wendy e Lucy, de Kelly Reichardt, em diálogo com o ensaio “São Paulo: Segregação Urbana e Desigualdade”, do urbanista e professor da USP Flávio Villaça (1929-2021). A personagem de Wendy, com sua cadela Lucy, representa o esgotamento silencioso daqueles que vivem à margem – sem casa, sem emprego, sem futuro –, assim como a população periférica paulistana retratada por Villaça, condenada a deslocamentos intermináveis e sem direito à própria cidade. A leitura conjunta das duas obras mostra a estrutura de poder que sustenta a segregação territorial e, ao mesmo tempo, a face emocional e existencial dessa exclusão urbana, segundo Noto.
Ao longo do livro, Noto também propõe aproximações entre cineastas, arquitetos e urbanistas como Federico Fellini e Carlo Aymonino, Martin Scorsese e Rem Koolhaas, Roman Polanski e Richard Sennett e Krzysztof Kieslowski e Thomas Schumacher.
Pesquisador que traçou toda sua trajetória acadêmica na FAU, Noto venceu em 2018 o Prêmio Capes de Teses e o Prêmio Investigación Arquisur com sua tese de doutorado, em que propôs um planejamento urbano de São Paulo centralizando os quarteirões. Segundo ele, a organização da cidade a partir dessa unidade superaria o individualismo de priorizar cada lote (terreno), sem perder de vista as particularidades de cada região.
Cinema e Temas Urbanos – Sete Filmes, Sete Textos, Sete Ensaios, de Felipe de Souza Noto, Editora da USP (Edusp), 160 páginas, R$ 40,00.
O livro será lançado no dia 24, às 19 horas, na Livraria Martins Fontes (Avenida Paulista, 509, em São Paulo). Entrada grátis.
Fonte: Jornal da USP